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Neurodivergência feminina:

a fetichização e o estigma social, na realidade e na ficção


Todo mundo tem uma — ou é uma — “ex-namorada maluca¹”.

Eu já fui (sou?) a “ex-namorada maluca”. Uma, duas, três vezes — pra cada uma das vezes que namorei: todos esses relacionamentos heterossexuais, de longa duração e convivência intensa. Todos destrutivos e difíceis, não só devido à minha própria condição de neurodivergente¹, mas também a dos meus namorados; então, ora, porque a culpa sempre recaía sobre mim, amulher? Claro que isso se enraíza e se entrelaça profundamente na ideia dogaslighting², mas há uma imagem muito clara da mulher maluca, na qual nós somos invariavelmente encaixadas em algum ponto das nossas vidas: seja no fim de um relacionamento, seja reagindo a um assédio, seja fazendo qualquer atividade por mais banal que seja; somos criadas com o mundo todo nos dizendo que somos loucas, e em algum ponto, perdemos a capacidade individual de negar isso para nós mesmas.
O peso de ser diagnosticada com qualquer transtorno mental é extremamente difícil de ser sustentado porque, sob um ponto de vista mais geral, todas as doenças psicológicas são altamente estigmatizadas. São tidas como drama, fingimento, frescura — quando elas podem são tão ou mais incapacitantes pra alguém quanto uma doença física qualquer. Portadores desses transtornos são entupidos de remédios, dopados, e isolados socialmente porque o comportamento ou a linha de pensamento fora dos padrões de “normalidade” impostos à nós não são apropriados; e, ainda que uma pessoa esteja em tratamento, ela vai sofrer. MalucaLouca. Quando você está gripado, vão te fazer chá e canja; quando você tem transtorno bipolar, o que vão fazer é te deixar num canto com os seus antidepressivos, antipsicóticos e seja lá o que for que você é coagido a engolir, literalmente, todos os dias.
No entanto, há algo muito curioso sobre a forma como a mulher neurodivergente é vista e socializada: ao mesmo passo que somos execradas e isoladas, somos extremamente fetichizadas por nossas condições, na vida real e em obras de ficção. Uma mulher em depressão precisa de alguém pra cuidar dela; uma com transtorno de personalidade narcisista é absolutamente fascinante pelo seu brilho; uma com transtorno de personalidade limítrofe émuito sexy. A concepção medieval, sim, medieval, de que mulheres são fracas e precisam de alguém pra protegê-las à todo custo à primeira vista pode parecer até fofo — “ah, que graça, aquele menino se preocupa comigo porque eu tenho tal condição e quer cuidar de mim! “ — mas não é nada além de um produto da ideia de que mulheres são incapazes de serem independentes e felizes sem a companhia de um homem responsável por privá-las das mazelas do mundo. E claro que isso é, além de extremamente sexista, só mais um reflexo da invisibilidade dos relacionamentos lésbicos (e que, diga-se de passagem, são muito menos frequentemente abusivos do que os heterossexuais).
Não, a gente não precisa de um homem pra nos proteger de nada — muito menos de nós mesmas.
A fetichização também parte da “fragilidade” com a qual nós somos invariavelmente rotuladas simplesmente por sermos mulheres, e que só piora quando você é portadora de um transtorno mental. Uma mulher quebrada, e precisa de alguém pra consertá-la; frágil, tão frágil, e você precisa cuidar dela, e colar todos os pedaços que se quebraram ao longo da vivência tão difícil dela, e todos os problemas, e organizar todas as caixas de remédio dela, uma por uma; você a ama, mesmo com seu comportamento errático e imprevísivel. É, você a ama. Ou você ama a possibilidade de se sentir um herói, reunindo os “pedaços quebrados” — caindo, mais uma vez, na ideia de que somos incapazes de lidar com nossos transtornos ou problemas sozinhas.
O fato é que nem sempre somos quebradas e muitas de nós conseguimos viver — ou somos forçadas a fingir que conseguimos — normalmente, portando seja lá o que tivermos. Sofremos com capacitismo constantemente, de forma muito mais escondida e sutil do que os portadores de deficiências físicas. E temos que ficar caladas e fingir que nada nos afeta: não porque a gente quer, claro; mas porque temos que esconder nossos transtornos, até quando estamos entre mulheres, e porque somos impiedosamente dopadas para ficarmos no nosso canto, sem incomodar ninguém com as atitudes mal-vistas socialmente que poderíamos tomar. Mas quando falamos abertamente sobre nossa condição, damos indiretamente e não-intencionalmente a alguém a oportunidade de nos salvar (de que, mesmo?). Pronto: mais uma vez, somos as mulheres partidas por dentro. Mas só até termos contato íntimo com alguém: aí nos tornamos histéricas, descontroladas e, mais uma vez, malucas.
O curioso é que esse “descontrole”, quando longe dos outros, é visto comoespontâneo e fascinante. O seguinte trecho é retirado de um texto que fala sobre Asuka Langley Soryu, uma das protagonistas do anime Neon Genesis Evangelion (1995), que é um dos retratos mais verossímeis de uma pessoa com transtorno de personalidade histriônica.
Porque a Asuka Langley Soryu é tão popular? Asuka é capaz de construir relações favoráveis com as personagens à sua volta, mas continua mantendo um certo nível de distância deles sem se aprofundar muito, e isso só dá mais charmea ela. (…) Ela é gentil mas age friamente, ela é fraca mas finge que é forte. Essa parte doce e infantil dela é, acima de tudo, o charme de Asuka. Mesmo que à primeira vista ela pareça perfeita, não podemos não nos sentir atraídos pelos momentos e espaços onde ela mostra as suas fraquezas!
Há duas coisas muito importantes a se considerar sobre esse parágrafo: primeiro, quando é uma mulher fictícia, seus sintomas são considerados umcharme; e segundo que eles são explicitamente tratados como fraqueza. Há muitos exemplos disso na ficção: Garota, Interrompida (1999), cuja protagonista sofre de transtorno de personalidade limítrofe; Biutiful (2010), onde uma das personagens tem transtorno bipolar — e em ambos os casos as personagens são frequentemente postas no papel de inerentemente maldosas, vilãs e histéricas, pelas atitudes erráticas que seus transtornos provocam. Mas quando a personagem neurodivergente em questão é um homem, como no caso de Psicopata Americano (2000) e Precisamos Falar Sobre o Kevin(2011), eles são simplesmente tachados como doentes. Não histéricos, nemfracos. Volta a questão da fragilidade embutida no diagnóstico de uma patologia psicológica em uma mulher: por que uma fraqueza? Só para nos colocarem de novo no papel de pessoas que precisam urgentemente de ajuda — e óbvio que, compulsoriamente, essa ajuda tem que partir dos homens — e que devem ser protegidas, cuidadas e, principalmente, isoladas. Porque nosso comportamento é estranho e somos descontroladas e nossa forma de pensar pode ser completamente ininteligível pra alguém de fora, isso justifica sermos isoladas dentro de uma “bolha”, certo?
Errado.
A constante variação entre os dois extremos de isolação social e fetichização/glorificação das mulheres neurodivergentes só ajuda a estigmatizar mais ainda nossas condições. Não somos bonecas que precisam de alguém constantemente ao nosso lado nos “protegendo” do mundo real, mas não somos monstros que precisam ser enxotados e proibidos de ter uma vida social normal. Não há recorte algum que sequer nos veja dentro do próprio movimento feminista, muito menos na sociedade como um todo. Nós podemos e precisamos manter contato social. Muitas de nós conseguem lidar com o peso de um, dois, mais transtornos psicológicos sozinhas; muitas precisam de ajuda para passar por isso. Algumas tem o privilégio de poder bancar remédios e acompanhamento psicológico. Algumas vivem normalmente, outras não.
A única coisa que não muda é que todas precisamos de empatia.
Precisamos de um espaço onde sequer podemos falar sobre nossos problemas, porque no dia-a-dia somos forçadas a esconder. Precisamos de um espaço onde não seremos vistas como histéricas, descontroladas, malucas, alucinadas, dramáticas, frescas. Precisamos que falar sobre o que nós temos seja como falar que você está gripado.
E ninguém acha que uma pessoa gripada precisa viver fingindo que ela não tem gripe.
¹ “Maluca” e “louca” são termos altamente capacitistas e que foram utilizados nesse texto com a intenção de reproduzir o que ouvimos, frequentemente. Já neurodivergente é um termo guarda-chuva para designar qualquer pessoa que sofra com transtornos psicológicos, caracterizando-as pelo desenvolvimento neurológico diferente do padrão de forma não-ofensiva.
² Gaslighting é uma forma de abuso psicológico que consiste em fazer a vítima duvidar de sua própria sanidade e percepção do mundo exterior, que pode ocorrer de diversas formas e é muito frequentemente usada contra mulheres.

Fonte: https://medium.com/@anandamuylaert/neurodiverg%C3%AAncia-feminina-fee513177bd6#.5kp1ieou2


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